“Arca de Noé”, baseada na obra de Vinicius de Moraes, é a maior animação brasileira já realizada, com quase 5 anos de produção. A estreia nos cinemas de todo o Brasil acontecerá dia 7 de novembro.
A obra, dirigida por Sérgio Machado e Alois di Leo, enche a tela e nossos olhos de alegria e outras emoções, tanto pela qualidade e magnitude do projeto quanto pela nostalgia e experiências que são trazidas à tona, sobretudo para os que viveram a época em que foram lançados os álbuns (discos de vinil) das canções feitas sobre os poemas de Vinicius e os especiais da TV Globo realizados a partir desses álbuns, no início da década de 1980. Em projeto positivamente ousado, o filme dialoga com pessoas de todas as idades de maneira igualmente rica e eficiente. Com roteiro recheado de referências contemporâneas, o longa é divertido e dinâmico de forma inteligente, equilibrada e eficiente. A obra conta ainda com novos arranjos das canções, interpretadas por grandes nomes do cinema, da televisão e da música popular brasileira. As produtoras que lideram o projeto são a Gullane e a VideoFilmes, em co-produção com Symbiosys (empresa Indiana), Globofilmes e Telecine, em associação com NIP, CMG e VM Cultural. A distribuição é feita pela Imagem Filmes.
Rodrigo Santoro e Marcelo Adnet dão vida aos ratinhos Vini e Tom (Inspirados em Vinicius de Moraes e Tom Jobin), personagens centrais do filme. O elenco conta também com nomes como Alice Braga, Lázaro Ramos, Gregório Duvivier, Débora Nascimento, Bruno Gagliasso, Chico César, Adriana Calcanhoto, Seu Jorge, entre muitos outros. O roteiro é escrito por Sérgio Machado, que também dirige o filme em parceria com Alois di Leo, este trazendo toda a sua experiência e paixão por animações. Diálogos adicionais foram escritos por Ingrid Guimarães e Heloísa Périssé, além de contribuições dos próprios atores durante o processo.
A ideia de um filme baseado na obra de Vinicius de Moraes partiu da filha mais velha do próprio Vinicius, a atriz e cineasta Suzana de Moraes. Ela procurou Walter Salles, que por sua vez convidou o roteirista e diretor Sérgio Machado, fazendo com que o projeto começasse a germinar. A atriz e cantora Mariana de Moraes, que é neta de Vinicius e sobrinha de Suzana, também participa do projeto, inclusive cantando uma das versões de “A Casa” nos créditos finais. Mariana diz que Vinicius era uma pessoa da coletividade, sempre trabalhando com parcerias. E não há melhor exemplo de coletividade do que esse filme (com mais de 1.500 pessoas envolvidas), que não somente renova e revigora a obra imortal de Vinicius como a expande de maneira digna.
Rodrigo Santoro e Marcelo Adnet são dois profissionais gigantes, muito comprometidos com o processo de cada trabalho, com o estudo e o aprofundamento em tudo o que fazem, em constante crescimento e aprimoramento de si mesmos como Artistas.
Em “Arca de Noé” o trabalho deles foi muito além das vozes: Santoro sugeriu à equipe que ele e Adnet desenvolvessem juntos suas personagens (coisa rara em animações, em que normalmente os dubladores gravam sozinhos), o que trouxe características muito mais ricas à dupla de ratinhos. Exploraram juntos possibilidades das personagens, interagiram e trabalharam movimentos corporais (que também serviram como base para as animações), experimentaram e improvisaram, o que resultou em ideias muito criativas, excelentes falas e piadas (como “Isso é ratismo!”, genialmente criado por Adnet) e conferiu um grau de humanização muito maior para as personagens, com mais naturalidade e espontaneidade na relação de amizade entre os ratinhos.
Comentando sobre esse processo, Santoro diz que a questão não era encontrar uma “vozinha” para um ratinho, mas “quais os sentimentos que estão ali, até porque senão o espectador não consegue se identificar, não consegue se envolver”.
Adnet e Santoro, assim como Alice Braga (que faz a voz da ratinha Nina), interpretaram suas falas também na versão em inglês que, por questões contratuais, foram gravadas primeiro. As animações foram feitas sobre essas falas, apenas posteriormente sendo realizada a dublagem em português.
De forma leve, fluida e orgânica, o filme insere inúmeras referências em diversas camadas, a começar por citações de outras obras de Vinicius. A própria “Menininha” do filme (“Suzaninha”, interpretada pela atriz Rihanna Barbosa, de 12 anos de idade), é uma clara homenagem a Suzana de Moraes: assim como Suzana foi o elo entre a obra do pai e o filme “Arca de Noé”, a menina do filme é quem pode ajudar Vini e Tom na tentativa de entrada na Arca. Além disso, muitas das falas pontuais remetem a expressões do idioma, a situações cotidianas, a “memes”, e fazem até mesmo referências ao meio artístico, por vezes de forma crítica (algumas não tão sutis: num determinado momento uma personagem diz aos ratinhos artistas que eles “não serão úteis” dentro da Arca, refletindo uma das inúmeras situações e dificuldades com as quais artistas frequentemente se deparam e têm de enfrentar em nossa sociedade).
Também muito bem exploradas são as características dos animais e suas maneiras de agir. Alguns, com maior participação, são desenvolvidos de maneira mais profunda e com camadas extras. Um dos melhores exemplos é Baruk, o “neologístico” Leão, que é o vilão (carismático e atrapalhado, mas ainda o vilão) da história. Personagem riquíssima, maravilhosamente interpretada por Lázaro Ramos, é fortemente inspirada em “Odorico Paraguaçu”, personagem da obra “O Bem-Amado”, de Dias Gomes.
O Leão, com sua deturpação das palavras no plano morfológico e a redundância dos pronomes reflexivos (mas não alterando a sintaxe), permite que todos compreendam o que diz. É uma maneira genial de se construir essa personagem que manifesta, na forma do discurso, o enviesamento persuasivo que a caracteriza. O Leão consegue, aos poucos, colocar-se como ditador, convencendo vários dos habitantes da Arca de que as decisões e orientações dele são o melhor para todos e para o convívio. Obviamente, quem não aceita de forma amistosa sua posição, é por ele chantageado. Afinal, ele é o mais forte, não é?
Outros exemplos são os próprios ratinhos e a Barata (Alfonso, um mexicano, interpretado por Gregório Duvivier), que tentará ajudar um dos ratinhos a entrar na Arca. Barata e rato: ambos animais dos quais as pessoas normalmente querem distância, considerados “sujos”, e que podem penetrar pelas mínimas frestas - aqui podemos refletir, mais especificamente, sobre toda a complexa questão da imigração (ou tentativa de) dos mexicanos para os EUA, as questões ligadas à xenofobia, etc., e sobre como artistas são tratados, em muitas ocasiões, com descaso, sendo colocados à margem da sociedade, situação sempre profundamente agravada em períodos de governos autoritários.
Como se não bastassem os ricos aspectos e camadas já citados, o filme consegue lidar com elementos simbólicos diversos. Aproveita, por exemplo, a própria ideia de “penetrabilidade” dos ratinhos para dialogar com características da própria arte (há uma cena em que um deles fala ao ouvido de uma personagem adormecida, da mesma forma com que poesia (recitada) e música nos chegam pelo ouvido). Até mesmo simbolismos mais amplos e tradicionais são bem utilizados, como em dois momentos de “imersão nas águas”, sintomaticamente antecedendo e sucedendo o que poderíamos chamar de “tempo de Arca”, ou como em uma cena em que uma personagem manifesta, de maneira muito bem-humorada, a ideia de “micro ciclos” de vida e morte (sempre no âmbito da leitura simbólica).
Quero salientar aqui que o que nos permite semelhantes leituras e interpretações é o fato de esses simbolismos formarem uma espécie de teia, conectando-se com ideias filosóficas mais amplas, presentes em várias culturas, dialogando com o próprio simbolismo da Arca enquanto “passagem”, “travessia”, “transição”. Tais simbolismos, que percorrem os séculos através de costumes, narrativas orais, míticas, contos de fadas, etc., quando fazem parte de uma obra artística como esse filme não se reduzem a uma mera referencialidade, significação ou mesmo metáfora. Diferentemente disso, manifestando-se de maneira orgânica na obra e (por isso mesmo) ganhando sentido próprio dentro dela, ao mesmo tempo integram e compõem a estrutura do todo da obra. Algo, aliás, sempre muito bem amalgamado em obras de Sérgio Machado e de Walter Salles..
Projetos dessa natureza e com tão alta qualidade não se realizam da noite para o dia, muito menos sem muito esforço, profissionalismo, atenção e cuidado. Sérgio conta que o roteiro passou por 16 ou 17 tratamentos, tendo o projeto se desenvolvido durante muitos anos. Sendo ele roteirista e diretor, diz que foi afinando o roteiro ao longo do tempo. Ainda em relação à qualidade e dimensão pretendidas, Felipe Sabino, um dos produtores de animação da NIP, que trabalha com animações há mais de 20 anos e é especializado em computação 3D, conta que um dos grandes desafios era manter o controle do resultado final, uma vez que havia tantas pessoas envolvidas no Brasil e no exterior. “É na pré-produção que o filme se realiza num projeto como esse”, diz Sabino, acrescentando que todos os diretores artísticos são do Brasil. A supervisão dos trabalhos da Symbiosys Entertainment, da Índia, ficou sob a responsabilidade do co-diretor Alois di Leo e de Maurício Dal, que também assinam a direção de fotografia do longa. Alois conta que, ao ser apresentado ao projeto, entendeu que estava diante do “projeto dos sonhos”.
Mas e as músicas?
Ao longo da história do filme, 9 canções presentes nos dois álbuns (“Arca de Noé” e “Arca de Noé 2”) são apresentadas, e algumas se repetem durante os créditos finais. Todos os arranjos são novos, inclusive para que haja maior diálogo com gerações atuais. Além das canções, o tema instrumental da faixa de abertura do primeiro álbum (entitulada “ A Arca de Noé”) aparece durante os créditos iniciais, sendo retomado em alguns momentos. As músicas originais foram compostas e arranjadas na década de 1980, a partir dos poemas de Vinicius de Moraes, por músicos como Paulo Soledade, Toquinho, Tom Jobin, entre outros, e interpretadas por diferentes artistas. (O livro de poemas, entitulado “Arca de Noé”, foi publicado no Brasil pela primeira vez em 1970.)
Uma canção extra foi composta especialmente para uma personagem do filme, o Bode Severino, pois era necessária como parte daquele momento da narrativa, explica o diretor Sérgio Machado. O paraibano Chico César, que interpreta a canção, diz ter ficado muito feliz ao receber o convite para fazer a personagem e ao saber que cantaria uma embolada, gênero musical típico da cultura de sua região. Ele nos falou um pouco sobre a importância de sua personagem:
“O bode entra num momento de virada do filme, em que ele diz ‘vamos resolver as coisas pela música’. (...) diz que a cultura, a música, ajuda a gente a definir a nossa história.”
As canções já fazem parte da memória e do imaginário coletivo brasileiro. Muitas pessoas que nasceram a partir da década de 1980 e que não sabem da existência dos poemas de Vinicius e das composições imaginam que essas músicas sejam parte de nossa tradição oral, como as canções folclóricas, cirandas, etc., sem autoria, o que mostra o quão profunda tem sido a penetração das obras em nossa cultura (fato que já foi atestado por pesquisa científica)!
A forte memória afetiva, aliás, foi algo compartilhado por vários integrantes do elenco e da equipe. Débora Nascimento, que dá voz à Baleia, fala sobre o quanto é diferente sua percepção como adulta, mãe de uma filha pequena, ao voltar a experienciar coisas que ficaram marcadas em sua própria infância. Ao ouvir novamente em uma pré-estreia do filme a canção “O Pato”, que fez parte de sua infância, a memória afetiva foi tão forte que seu corpo começou a se movimentar de forma instintiva, fazendo-a se sentir pequena novamente. Débora também disse que aprendeu a ler com a obra de Vinicius de Moraes, o que torna tal memória afetiva ainda mais forte. Ela chegou a levar sua filha ao estúdio para que acompanhasse a dublagem. A menina ficou encantada ao presenciar o momento mágico em que a mãe dava vida à Baleia, assim como a própria Débora, por poder proporcionar essa experiência de conexão tão bonita entre as duas e a obra.
Sérgio Machado comenta que chorava quando criança ao ouvir “Menininha”, tendo ele na época uma irmã bem mais nova.
Rodrigo Santoro compartilha desse sentimento, dizendo que também chorava com a mesma canção, sem saber explicar o motivo, e sublinha o fato de a obra atravessar diferentes momentos de sua vida: hoje em dia, com duas filhas, ele entende por outra perspectiva o significado mais profundo da letra e da música. Santoro ainda diz que a emoção o fez interromper várias vezes a gravação da canção, pois começava a reviver aquele inexplicável e belo sentimento da infância, chegando a se emocionar novamente ao contar essas experiências na coletiva de imprensa. Ele ainda comenta que até hoje se lembra do impacto e da emoção que sentia ao ouvir o disco quando criança.
Sérgio Machado explica que 3 diretrizes guiaram o projeto desde o início: teria de ser “algo grande, à altura de Vinicius e do sonho de sua filha Suzana”; procuraria trazer o espírito do Vinicius, as características de sua “Arca de Noé”; e deveria transmitir uma mensagem importante para as crianças: que
“os fracos têm de se juntar para fazer frente aos mais fortes”, que somente “juntos os fracos podem fazer frente à tirania” e que “a Arte é o melhor antídoto contra a barbárie”.
1ª Mostrinha
As crianças! A “1ª Mostrinha”, programação infantil que fez parte este ano da “48ª Mostra Internacional de Cinema” em São Paulo, exibiu a animação “Arca de Noé” como filme de abertura, com presença de integrantes do elenco e da equipe. Rodrigo Santoro conta que 800 crianças assistiram à exibição e que a experiência foi de catarse. Ele reforça a importância da experiência coletiva de se assistir a um filme em uma sala de cinema. Também a pré-estreia, que ocorreu no dia 30 de outubro no Shopping Iguatemi em São Paulo, foi um enorme sucesso: as 5 salas exibiram o filme simultaneamente, todas lotadas, sendo necessário que uma sessão extra fosse aberta para o final da noite. Alguns atores e membros da equipe também estiveram presentes, aumentando ainda mais o entusiasmo dos adultos e das crianças, que já estavam ansiosos pelo filme.
Ao final, mesmo com horário apertado, atores como Lázaro Ramos e Rodrigo Santoro fizeram questão de ainda tentar tirar algumas tão requisitadas fotos, especialmente com as crianças. Uma professora ainda perguntou a Santoro: “Professora pode tirar foto primeiro?”, e a resposta dele foi, com leveza e gentileza: “Não, primeiro as crianças”.
Sejam as crianças de fato, sejam as crianças que os adultos carregam dentro de si, sejam as crianças que os adultos vislumbram em seu próprio passado ou simplesmente adultos abertos a um melhor futuro a ser construído, a Arca de Vinicius está viva e convida todas as pessoas a embarcarem numa viagem prazerosa, bonita e transformadora.
“E abre-se a porta da Arca”!
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