“Sei lá, sempre tem que ter razão?”
*filme disponível no streaming da Max
Entre 2020 e 2021 tive assinatura do jornal El Paìs, cuja redação acabou fechando no Brasil, e numa das edições me deparei com um mapa interativo dos EUA que, ao passarmos o cursor do mouse nos pontos vermelhos, tínhamos acesso a dados de casos de tiroteio em escolas americanas. Era bizarro, aterrador e inacreditável. Centenas de casos ao longo de décadas, e seguramente o que chegava e ainda chega na mídia é uma ínfima parte do que acontece.
O cinema possui um histórico de produções, em minha opinião muito boas, que abordam essas tragédias (anunciadas?), seja nos EUA como no resto do mundo: Tiros em Columbine (2002, Michael Moore), Elefante (2003, Gus Van Sant), Utoya e 22 de julho (2018, Erik Poppe e Paul Greengrass) e aquele que deu o que falar, Precisamos Falar Sobre Kevin (2011, Lynne Ramsay) que ousou mostrar “a vida depois” da mãe do assassino.
Assisti a todos e arrisco dizer que The Fallout, que poderia ser traduzido como A Consequência, O Resultado ou o Depois e, desta vez gostei mais da tradução em português, que este filme seria o mais delicado e intimista de todos os que eu assisti. Uma preciosidade que retrata a jornada adolescente de amadurecimento diante de um acontecimento incompreensível, de fundo político e social contundente.
Quatro adolescentes na casa dos seus 16 anos, Vada (Jenna Ortega), Mia (Maddie Ziegler), Quinton (Niles Fitch) e Nick (Will Ropp), todos presentes no momento trágico, cada um a sua maneira a lidar com esse trauma.
A temática do filme por si só descortina uma violência absurda, daquelas que geram inúmeras mortes, num ambiente que deveria imperar a amizade, os pequenos contrastes e enfrentamentos, o conhecimento, o acolhimento e a segurança, seja física ou psicológica. A diretora Megan Park em seu primeiro longa e aqui, também roteirista, nos apresenta o total horror vivido por Vada, Mia e Quinton no cubículo do banheiro, sem cenas expositivas e com performances impressionantes desses atores. A velha história de que a sugestão pode ser mais aterradora que cabeças rolantes ou corpos espalhados. A cena do banheiro, onde ouvimos tudo o que acontece, nos coloca numa posição de profunda empatia com nossos personagens e de todos aqueles fora de campo.
Mas o filme inicia mesmo com imagens solares, alegres, vibrantes na qual percebemos como é a vida escolar de Vada e Nick, dessas vidas banais adolescentes, escolares, iluminadas, angustiantes também, sexualidades pulsantes, tudo como deveria ser.
Entretanto, o impensável acontece, e agora? Como se lida com isso? Se já não bastasse toda a loucura interior de uma vida adolescente, enfrentar um mundo exterior em frangalhos, assim, do dia pra noite.
Nossos personagens iniciam então suas batalhas particulares: Nick milita contra a política de armamento, Quinton lida com o luto da perda física, Vada e Mia se aproximam, se descobrem, se encantam. Desse encontro surgem as imagens mais afetuosas, delicadas, íntimas e acolhedoras da estória. Pequena coreografia na piscina, olhares à procura de compreensão do mundo, cumplicidade, garrafas e garrafas de vinho, uso de alguns alucinógenos (cenas cômicas deliciosas) e sim, os desentendimentos por conta da falta de repertório para enfrentar uma dor terrível.
A diretora não se furta de mostrar também como as famílias de alguns personagens lidam com os acontecimentos. Uma delas não sabe o que fazer com o absurdo que finalmente bate à sua porta, a outra está ausente, totalmente. Uma ausência que não deixa de ser uma forma de lidar, gostemos ou não.
O filme tem poucas cenas à noite, nelas vislumbramos os pesadelos de Vada, a insônia de Mia, suas angustias e profunda solidão. O seguir a vida, a elaboração da tragédia, a tentativa de significar as perdas, ocorrem nas cenas ensolaradas, nas cenas com muita vida ao redor.
Particularmente gosto muito da atriz Shailene Woodley que aqui, tem uma participação pequena, cuja personagem Anna transmite afeto e acolhimento em seu olhar e palavras, tirando Vada de dentro de sua cápsula, onde “tá tudo bem, mas eu não estou sentindo nada”.
Menção honradíssima para a atriz Lumi Polack e sua personagem Amelia como a irmã caçula de Vada com suas tiradas maravilhosas, humor e inteligência, que mesmo não estudando na mesma escola da irmã, demora a entender o peso do que aconteceu. Um show de interpretação.
A vida depois desses personagens segue em frente como se é esperado, a volta à escola adiada por um tempo pode ser traumático também. As coisas se assentam e se acalmam, mesmo que seja na superfície. Ao final, em uma cena muito interessante a diretora sai do quadro mais intimista e abre espaço para que a tragédia social e política nos mostre que, o que aconteceu está muito longe de ter fim.
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