Crítica | Acabe com eles (Bring Them Down) – 2024
- Pê Dias
- há 19 horas
- 5 min de leitura
Atualizado: há 16 minutos
“Por que? Por que fez isso? Deveria ter nos deixado passar pelo maldito portão”
Disponível na Mubi

De uns tempos pra cá a machosfera vem sendo mais e mais dissecada e discutida: séries, filmes, livros, podcasts, o tema está na mesa talvez como nunca antes, numa perspectiva crítica e não naturalizada como no passado. No momento, a série Adolescência (Adolescence, 2025) vem deixando muita gente apreensiva, com pais e mães se sentindo culpados e angustiados. Nessa badalada série temos o que poderíamos chamar de o ovo da serpente, a violência de gênero, a misoginia e o machismo em seus “anos” iniciais.
O filme de Chistopher Andrews (estreando em longas) se passa no universo rural do interior da Irlanda, gelado, com lindas paisagens naturais, entretanto numa aridez de afetos muito perceptível. As duas únicas personagens femininas centrais na narrativa, seja na presença física ou na lembrança, Peggy e Caroline são mulheres sufocadas e presas em ciclos de violência.
Por outro lado os personagens masculinos estão enclausurados em suas crenças patriarcais, não sabem lidar com sentimentos, em disputa por terras, mulheres e ovelhas. Além do recorte social temos o econômico, simbolizado pelas dificuldades de se manter uma fazenda cuja atividade principal, o pastoreio, é uma tradição de séculos, tradição essa sempre ameaçada pelos novos tempos, pela tecnologia, o que deixa tudo muito mais violento e complexo.
Arriscaria dizer que o filme franco-espanhol As Bestas (Rodrigo Sorogoyen) retrata de certa maneira toda essa violência pungente no interior dos homens, assim como no interior das terras, entretanto no filme de 2022, a xenofobia fala mais alto.
De uma perspectiva intimista pontuando a turbulência interna de alguns personagens até os acontecimentos externos tão brutais quanto inacreditáveis, chegamos ao fim do filme nos perguntando: o que diabos aconteceu? Como chegamos até aqui?
Em síntese, há uma propriedade rural de criação de ovelhas, um pai profundamente violento e ressentido, seu filho devastado por uma culpa, sempre a um triz de cometer atos que não poderão jamais serem desfeitos, outro pai violento e seu filho atordoado entre o certo e o errado e, ao cabo de tudo, o estopim: um portão.

A partir da negativa de Ray (Colm Meaney), esse pai quase inválido e violento, que não permite que seus vizinhos Gary (Paul Ready) e seu filho Jack (Barry Keoghan) passem por dentro de suas terras em um dia de forte chuva, acompanhamos uma cadeia de acontecimentos que com a ajuda da ótima trilha sonora vai tensionando cada vez mais as situações nas quais observamos passivamente e com gosto bem amargo na boca.
As violências são tantas que nem as ovelhas são poupadas , transformadas em objetos de disputas e rivalidades entre esses homens orgulhosos e tóxicos que não enxergam limites em seus atos. Se há algum tipo de remorso ou arrependimento, provavelmente será tarde demais.
As personagens femininas são Peggy (Susan Lynch), mãe de Michael (Christoper Abbot) e sua ex-namorada Caroline (Nora-Jane Noone), agora casada com seu vizinho e rival, Gary. O quanto de violento há num filho que ao saber que sua mãe deixará seu pai, perde o controle totalmente e coloca em risco de morte essa mãe e, como dano colateral, sua namorada? O quanto de opressão e violência pode ser passado de pai pra filho?
Logo que conhecemos Ray sabemos que o ar em seu entorno é irrespirável. Há um clássico aqui: filhos querendo atender as expectativas paternas, imitá-los, sentirem-se reconhecidos para além de uma mera continuidade funcional dos negócios da família. Ou seja, falta abraço, beijo, choro, riso, afago, amor. Ingredientes que, ausentes em determinado(s) ponto(s) da vida, pode faltar para o resto dela, ou simplesmente não serem mais reconhecidos.

Michael, interpretado de forma muito pungente por Christopher Abbot (Ele Vem à Noite, 2017; Pobres Criaturas, 2023) é um poço de culpa. Essa culpa não revisitada, reconfigurada, essa dor que não se apazigua, leva a um ciclo de mais violência. Não se trata de relativizar as ações do personagem mas, de ao menos tentar compreender as raízes envolvidas nessa masculinidade que não para de fazer vítimas.
Jack (Barry Keoghan) nos apresenta uma personalidade passiva (não menos violenta) entre a amorosidade da mãe e a crueza do pai, facilmente manipulável pelo primo Lee (Aaron Heffernan), outro personagem puro suco da crueldade. Tanto Michael quanto Jack são personagens nas quais poderíamos imaginar que em outras circunstâncias, talvez, e aqui reforço o talvez, não fossem tão brutais. Barry Keoghan está mesmo se especializando em personagens estranhos e difíceis, e isso é um elogio. Para mim, ainda é o Dominic em The Banshees Of Inisherin (2023) seu melhor personagem.


O roteiro (Chris Andrews e Jonathan Hourigan) acerta quando de forma sutil e discreta nos joga no meio de duas narrativas diferentes, dois pontos de vista do que vimos até agora. A escalada da violência nos é colocada em perspectiva, o que não atenua nosso horror.
Conhecemos a personagem de Nora-Jane Noone (Em Nome de Deus, 2002), Caroline em um rápido diálogo com Michael, numa cena que transmite urgência e desconforto por parte dele (claramente ele não quer estar ali, apesar de necessário) e, da parte dela, surpresa ao vê-lo décadas depois, um afeto e carinho ainda emergem, cicatrizes físicas e emocionais, dores possivelmente nunca expurgadas. Percebemos também que a personagem está feliz e apreensiva com um emprego novo, entretanto há uma angústia de como isso funcionará já que, ao que parece, a vaga é numa cidade próxima.
Algo que achei muito interessante foi uma certa subversão no papel de Caroline dentro da família: ao mesmo tempo que há uma percepção que Gary pode ser violento de alguma forma, Caroline não se faz de rogada e, em certo momento seu filho Jack indica que não se consegue muita informação dela, ela faz o que quer. E só o fato de um filho questionar ou ironizar essa autonomia fica claro como funciona esse ambiente masculino.

Gosto bastante de filmes que circulam pelas áreas rurais, em especial aquelas frias ou geladas (seria por que moro no sertão?), suas paisagens e ritmos. O filme franco-espanhol que citei mais acima, As Bestas, também é um exemplo do que me atrai. Tive uma grata surpresa com o filme O Reino de Deus (2017) com Josh O’Connor (anos antes de ficar queridinho com Rivais ou The Crown), que se passa nas mesmas paisagens e configura outra violência: homens do campo, do serviço pesado e duro, podem ser homossexuais? Essas paisagens acabam refletindo a solidão de seus personagens, a brutalidade de se lidar com tudo e todos à volta, mas também pode-se causar uma certa exaustão no tema, sugerindo que naquele meio, só podem acontecer determinadas situações, sem abertura para soluções possíveis e caminhos alternativos.
Bem, enquanto ainda não me sinto exausta e, antagonicamente, animada com obras que dialogam com essa masculinidade que já devia estar com prazo de validade vencido, achei o filme muito bom, com sua tensão crescente que não nos faz perder o interesse em momento algum e interpretações poderosas. Detalhe curioso: como a paisagem rural não deixa de ser um personagem também, o filme não privilegia tanto os planos gerais ou conjuntos, mas os médios e primeiros planos, mostrando que por mais que haja um mundo inteiro lá fora, é dentro de nós que acontecem a maiores tragédias.
