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Crítica | Here (2024)

Disponível na Mubi


“ Tudo se tornou fluido e me rendi à unidade de dez mil coisas. Então ouvi uma sirene ao longe e pensei: uma sirene. E os nomes das coisas voltaram como uma onda avançando sobre mim. Então me levantei e fiz café”



Créditos divulgação
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O texto escrito acima é a transcrição de um sonho narrado in off pela personagem Shuxiu (Liyo Gong) que marca sua entrada na narrativa, descrito muito pacientemente e de forma poética, ao som do vento que se entrelaça na copa das árvores, plantações, insetos, aves. Até que o urbano invade a aventura e só resta fazer um café.


Iniciamos o filme dirigido e roteirizado por Bas Davos observando cenas no entorno de um edifício em construção na cidade de Bruxelas, e a cada corte temos um ângulo diferente. Nosso protagonista Stefan (Stefan Gota) que logo descobrirmos ser um trabalhador da construção civil, imigrante da Romênia está entrando de férias junto com outros colegas trabalhadores, numa espécie de pausa coletiva da obra.


Acompanhamos então a jornada encantadora de Stefan que voltará para seu país, onde sua mãe já o espera. Ele precisará esvaziar sua geladeira, antes que o seu conteúdo se estrague, não havendo lugar aqui para desperdícios, assim como não se desperdiça nenhuma cena esse pequeno e delicado filme.


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Selva de pedra

Stefan caminha pela capital da Bélgica para se despedir dos amigos que fez durante sua estadia, carregando consigo potinhos com a sopa que fez com os vegetais encontrados na geladeira, presenteando cada um deles. Um amigo que trabalha num restaurante, sua irmã que trabalha num hospital, outro amigo dono de oficina onde Stefan tem um carro para consertar, a nova amiga Shuxiu. Repete para si mesmo afirmações do tipo “estou acordado” ou “esta casa é minha”, com suavidade.


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Esvaziando a geladeira

Não há aqui problematização sobre a horrenda tragédia que são as ondas migratórias nos últimos anos e nem sobre a precarização do trabalho dessas pessoas. O recorte é outro, é do micro. Alguns podem achar que nada acontece nesta obra, porque ela nos convida para o aqui, para o respiro e a contemplação, coisas que vão se perdendo cada vez mais.

O contraponto à obra contemplativa está nas minúcias: o restaurante da tia de Shuxiu sempre vazio pois a demanda majoritária é o delivery, os trens passando de um lado para o outro, o caminhar por um túnel, a própria oficina de Mihai (Teodor Corban), os passageiros de um ônibus com seus olhos grudados na tela de seus celulares.


A cidade com seus sons, compasso e pressa dá um jeito de transbordar pelas frestas. Entretanto, Stefan passa os seus últimos dias a caminhar pelas ruas, numa ritualística solitária e altiva, quase que seduzindo a cidade a acompanhar seu ritmo. Nessa caminhada percebemos que os sons da natureza que ainda circunda a metrópole se misturam com o barulho do concreto, do trânsito, compondo uma bela sinfonia.


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O desenho de som faz um trabalho ótimo ao mesclar ruídos típicos de uma urbanidade com o que geralmente ouviríamos dentro de uma floresta, bosque ou mesmo um parque. A trilha sonora (Brecht Ameel) bastante discreta e pontual nos envolve na contemplação dos dias que passam. A escolha por uma razão de aspecto bastante reduzida ajuda a ficarmos mais perto dos personagens e me trouxe a sensação de certa urgência no tempo, naquilo que Stefan ainda precisa fazer e sentir antes de sua partida.


Créditos divulgação
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As longas caminhadas pela cidade proporcionam alguns encontros casuais e singelos como aquele com a moça da horta comunitária e, finalmente com Shuxiu, imigrante como ele mas, aparentemente mais enraizada no país, e professora de uma universidade. Ela é briologista e também percorre a cidade à procura de musgos para seus estudos.


A profissão de Shuxiu me fez lembrar de outro filme, The Outrum, 2024 (direção de Nora Fingscheidt) na qual a personagem de Soirse Ronan é uma bióloga. Ambas profissões são utilizadas nos dois filmes como um dos elemento central das tramas, ora servindo de metáforas, ora trazendo algum conhecimento para quem assisti. Reforço esse detalhe porque estamos mais acostumados a ver nas obras profissões como escritores, poetas, advogados, policiais…


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Shuxiu no restaurante da tia

Stefan, trabalhador braçal, nos encanta com sua curiosidade quase infantil, algo que também estamos perdendo, assim como a capacidade de contemplação. Ele conversa, pergunta, sorri, escuta, se importa com quem cruza pelo seu caminho. Ao se interessar autenticamente pela pesquisa de Shuxiu e acompanhá-la pela floresta, sob chuva ou sob as estrelas, observando esses seres minúsculos do reino vegetal em todo seu esplendor, com uma promessa de amizade ou amor, pouco importa, sentimos o poder que belas cenas podem nos proporcionar. E que cena maravilhosa o final desta obra deixa em nossa memória.


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Conhecendo gente pelo caminho
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A vida pulsante sob nossos pés

Geralmente nos créditos finais lemos a frase a film by para em seguida vir o nome da diretora ou diretor. Aqui, após o a film by aparece de uma vez só o nome de todos os envolvidos na obra e lacunas entre eles, que aos poucos vão sendo preenchidas com o nome dos personagens e a da função de cada um quando chega na equipe técnica. Amei essa forma de reafirmar que o cinema é um trabalho coletivo.


Curiosidades: A atriz Liyo Gong é também montadora. Ela faz parte da equipe de montadores da trilogia documental do diretor chinês Wang Bing. Os três filmes se concentram em um grupo de trabalhadores jovens da indústria têxtil de uma cidade: Juventude (Primavera), 2023, Juventude (tempos difíceis) e Juventude (De volta ao lar), ambos de 2024.

O ator Teodor Corban que faz o personagem Mihai, dono da oficina faleceu em 2023 recebendo uma pequena homenagem no final dos créditos.

Alba Rorhwacher e Lubna Azabal (Incêndios, 2010 e O Cafetã Azul, 2022) já trabalharam com o diretor Bas Devos no filme Hellhole de 2019.

Briologia é o ramo da biologia que estuda as briófitas que são os musgos.


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