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Crítica | Levante, 2023

Foto do escritor: Pê DiasPê Dias

“Você nessa altura só pode escolher ajudar ou atrapalhar”


Filme disponível no Telecine


Levante
Levante

Acho que nunca me cansarei de dizer que os filmes nacionais criam títulos interessantíssimos, muitas vezes poéticos, outras potentes. Levante, filme de Lilah Halla, que divide o roteiro com Maria Elena Morán é tão potente quanto seu título, cujo significante por si só é cheio de significados. O quanto podemos dissecar da palavra LEVANTE ? Apesar de ser um filme de 2023, trás uma discussão muito importante para os acontecimentos de 2024 (2025, 26, 27...) que envolvem o direito ao aborto.

No Brasil o aborto é legal em três casos: anencefalia fetal, gravidez de risco pra a gestante e gravidez decorrente de estupro, e ao contrário de que muita gente pensa, não há um limite máximo para a interrupção de forma legal. Atualmente circula em nossas casas legislativas projetos de lei que querem proibir e punir a interrupção da gravidez nos casos legais após a 22ª semana e, incansáveis como são, criminalizar de vez a gravidez nos casos legais. Foi introduzido também no PL um jabuti, proibindo a fertilização in vitro.


A estória de Levante traz a personagem Sofia (Ayomi Domenica, ótima no papel), adolescente de 17 anos jogadora de vôlei com futuro promissor no esporte, envolvida numa gravidez indesejada. Mas não nos enganemos, o filme vai muito além da temática sobre o aborto, que é um gancho para falar sobre o coletivo, a sororidade e soberania sobre nossas corpas*.


Levante é uma festa sobre diversidade de gênero e sexual, sobre uso das cores e da música, potência e alegria, onde o dilema da protagonista é matéria-prima de luta. Um presente para a comunidade LGBTQIAPN+.

Em muitas sinopses sobre o filme, a palavra dilema é utilizada, mas arrisco dizer que a primeira ruptura do convencional é o fato de Sofia não ter dúvidas: ela não quer essa gravidez, ela não vacila.

A cena que abre o filme já indica o tom alegre e um tanto subversivo da obra, um pequeno manual de como cometer pequenos roubos se disfarçando de crente. Nos créditos iniciais o nome  do filme surge escrito de forma a chamar nossa atenção e envolto por duas cores fortes e brilhantes: laranja e rosa. O uso das cores é bastante interessante, seja nas luzes piscando nos momentos festivos, durante uma conversa difícil entre duas amigas ou, em particular o uso do azul neon que procura nos transmitir a angustia da protagonista, o peso de um segredo dividido com apenas uma amiga.

A trilha sonora (Juçara Marçal, Maria Beraldo e Badsista são alguns dos nomes envolvidos) é acertada e empolgante, circulando entre a música eletrônica e o funk. Cores e trilha sonora combinando perfeitamente com o espírito de nossas personagens.

Nossa heroína é uma garota como tantas outras, moradora da periferia, mulher preta, com um pai amoroso e presente (e lá vem ele, que está em ao menos 80% dos filmes nacionais que assisto, o sempre muito bom Rômulo Braga), muito querida pelas amigas, jogadora de vôlei cotada pela olheira Tânia (Larissa Siqueira de Pendular, 2017) para passar um tempo no Chile jogando.

E que graciosa surpresa ao conhecer o time de vôlei, C. Leste, um grupo de meninas absolutamente diversas em seus gêneros, corpas e sexualidades, transpirando vibração, força, parceria e irreverência. A começar pela treinadora Sol interpretada pela sempre gigante Grace Passô (O Dia Em Que Te Conheci, 2024) cuja personagem foi a responsável pela composição desse ousado time diverso e, como o roteiro indica em algum momento, ela é persona non grata pela direção do clube, dono do time de vôlei.

Além da própria Sofia, o time é composto por personagens tão cativantes que não resisti pesquisar sobre cada uma delas: a Nicolle, capitã do time (Onna Silva, Medida Provisória, 2020); Bel (Loro Bardot em sua estreia no cinema como atriz mas, com trilhas sonoras no currículo e também cantora); Ciano (Lorre Motta, curta Paciência Selvagem Me Trouxe Até Aqui, 2021); Mayumi (Karina Rie Ishida); Lorelai (Lorena Costa), Elisa (Helô Campelo); Isabela (Isabella Pinheiro) e Rebeca (Heloisa Pires).


Levante, 2023

As cenas dos jogos não empolgam tanto, mas dão o tom da narrativa, indicando o quanto o time traz resultados. O uso do jogo narrado ao vivo por um “radialista”, talvez como forma de diálogo expositivo trazendo o contexto da história, me soou desnecessário.

A diretora usa muito bem a câmera sem ser invasiva para mostrar quem são essas meninas, descortinando cenas no vestiário onde elas tomam banho, brincam, falam de menstruação, cantam e se mostram muita à vontade com suas corpas, sejam pretas, magras, trans, gordas ou musculosas. Uma pequena cena dá pistas da subversão desse time, uma placa do vestiário feminino recebe um outro nome.

A montagem usa de cortes rápidos de paisagens urbanas e detalhes dessas paisagens que nos situam sobre onde vivem as personagens, os caminhos que elas percorrem, quase sempre juntas, uma adolescência pulsante. Interessante também o uso de elementos metafóricos relativos à profissão do João, pai de Sofia, apicultor, cuja montagem usa de simbolismos para anteceder cenas de conflito ou de pura angústia, como um pote de mel derramando sobre o chão, um enxame em polvorosa antecedendo a chegada de uma personagem indesejada, ou cenas com personagens em situação de risco usando roupas de proteção dos apicultores.

O roteiro acerta em mostrar aos poucos as consequências do conflito interno de Sofia (nunca sobre fazer ou não, mas como fazer) que procura uma clínica de aborto mas, que na realidade é uma enganação e, as tentativas perigosas de interromper a gravidez através da automutilação. A obra faz um alerta dessas instituições cada vez mais presentes e ligadas as igrejas neopentecostais (e de matizes católicas) que aproveitam da fragilidade e desespero de mulheres grávidas, impingindo mais violências e crueldades. A personagem Glória (haveria ironia nesse nome?) vivida pela atriz Gláucia Vandeveld (Arábia, 2017; No Coração do Mundo, 2019) representa muito bem esses setores numa participação que nos faz a odiar. Mérito da atriz.

Particularmente me empolgo com personagens mais velhas que trazem performances e personagens mais libertárias e progressistas. Leda (Zora Santos) avó da Ciano, através de uma única frase muda totalmente a perspectiva de João em relação à gravidez da filha. Mas a delícia dessa personagem não fica apenas aí.

O filme também acerta lindamente na naturalidade e espontaneidade dos diálogos, sem excessos e filosofias, mas a vida vivida no cotidiano da pessoa comum e por isso mesmo, cheia de complexidades. Nota dez para o diálogo expositivo das jogadoras que se unem para ajudar Sofia na empreitada do aborto, onde fica claro quem pode fazer ou não o procedimento de forma segura no Brasil.

A cena, digamos, resolutiva da obra, que não poderia ser em outro lugar que não a quadra, não me pareceu tão bem resolvida na sua montagem, com cortes rápidos e bruscos; seria uma cena de ação e caos. Aliás, acho que o filme funciona pouco nas cenas em quadra, o que não tira um milímetro da beleza da obra.

Uma frase ficou comigo após os créditos finais: “ mulher grávida no meu time não joga”. São tantos problemas nessa frase que nem saberia por onde começar. Até porque gravidez não é doença e, que tipo de mulher pode e não pode engravidar? Quem tem o direito de dizer isso e falar de nossas corpas, decidindo por nós?

Levante é um levante para que mais temas como esses possam ser discutidos e debatidos sem vieses hipócritas, moralistas e religiosos.


* Usarei neste texto a palavra “corpas”. Acredito que a linguagem é viva e deveria se moldar às mudanças da sociedade e não ficar apenas engessada às regras gramaticais. A palavra ressignificada corpa é utilizada como parte da linguagem neutra, gênero feminino e/ou não binárie pelas mulheres trans abarcando a diversidade de gênero e sexual de nossas personagens.


Curiosidades: A atriz Zora Santos de 70 anos é cozinheira, pesquisadora da culinária afro-mineira e já foi dirigida nos palcos pela maravilhosa Grace Passô.

Momento fofo: a caminhonete do João com adesivos de abelhas contrastando a imagem do homem provedor da família e a dureza de um veículo para trabalhos pesados.

O filme foi selecionado para a 62ª Semana da Crítica em 2023, evento paralelo ao Festival de Cannes.

Foi um dos seis longas-metragens escolhidos pela comissão da Academia Brasileira de Cinema para concorrer à indicação para uma vaga na categoria de Melhor Filme Internacional na 97ª Premiação Anual promovida pela Academy of Motion Picture Arts and Sciences – Oscar 2025.

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