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CRÍTICA | Madame Ida* (2023)

Foto do escritor: Pê DiasPê Dias

*Filme dinamarquês, mas esse é o título original.


“ Cecilia é uma das nossas filhas mais queridas. Ela é quieta e obediente, saudável e limpa”.


Madame Ida
Madame Ida

Emília Perez (calma, não vou mexer neste vespeiro…) trouxe à tona uma questão bem interessante que foi o apontamento de quem é a(o) protagonista de uma narrativa cinematográfica. Há um consenso de que neste caso a protagonista é a advogada Rita Moreno, vivida pela Zoë Saldaña e só concorreu como coadjuvante como estratégia dos produtores para alavancar premiações. A Emília que dá título ao filme, não é a personagem principal. Algo acontece aqui no filme de estreia de Jacob Møller, sem estratégias de marketing para premiações: apesar do título do filme, a protagonista é uma jovem órfã de 15 anos, Cecilia (Flora Ofelia Hofmann Lindahl), numa atuação poderosa e performance corporal notável.


Madame Ida
Cecilia

Impossível não comparar o clima deste filme com os trabalhos de Ingmar Bergman ou Lars Von Trier, e também podemos dizer que através de um acontecimento crucial no terço final do filme, ao cinema de Thomas Vinterberg. Sim, temos um filme triste, doído, com poucos respiros e que nos mostra como as mulheres podem ser torturadas, abusadas e punidas de tantas formas.

Passando-se nos anos 50, o filme nos apresenta Cecilia, órfã grávida que será obrigada a dar seu filho quando nascer. Ela passará sua gravidez hospedada na mansão de Ida (Christine Albeck), mulher rica e aristocrática, que quer de qualquer maneira, um filho.

Já nos primeiros minutos percebemos que este filme não dará trégua (de certa forma dará sim) ao sofrimento de Cecilia. A fotografia é basicamente opressora, com a câmera quase sempre posicionada em algum corredor sombrio, observando as personagens em algum outro cômodo, quase como o olhar de um visitante que não interfere no cotidiano delas.

Não sabemos como Cecilia chegou ao orfanato, e praticamente nada sobre sua vida. O breve recorte de seu cotidiano que o filme mostra ainda no orfanato é uma cena com tantas camadas de violência simbólica e física que entendemos cada milímetro de expressão do seu rosto: ódio, profunda tristeza, resignação, perplexidade, agressividade. Cecilia sofre calada, é forte, é solitária, mas de uma forma ou de outra, gostemos ou não, ela reage.

As cores proeminentes sempre são em tons pastéis, escuras. Os corredores do orfanato são feios, mal cuidados, claustrofóbicos. A primeira (e última) impressão que temos é que se trata muito mais de um presídio.

A chegada de Cecilia à Aurora, mansão da personagem Ida não atenua nem um pouco o mal estar da personagem. Entregue a essa aristocrata como se fosse uma encomenda, é perceptível todo o constrangimento das pessoas em cena. Dos males o menor. Esse ser humano-objeto, que carrega outro ser humano-objeto no ventre, tem data certa pra chegar e ir embora. E a ideia de se voltar para o mesmo lugar de onde se veio, é tão assustadora para Cecilia, quase sempre em posição de bicho acuado, quanto para nós que percebemos a gravidade dos fatos, nessa sociedade tremendamente patriarcal e misógina.


Madame Ida
Cecilia a caminho para Aurora

Finalmente a dinâmica principal do filme nos é apresentada, a convivência entre três personagens tão diferentes quanto sofridas, cada uma à sua maneira. Cecilia, Ida, que também não sabemos praticamente nada até o terço final do filme, e Alma. Esta, é a personagem empregada-praticamente-da-família, como quase toda burguesia deve ter. Sabemos apenas que Alma chegou em Aurora quando Ida era ainda pequena, e nunca mais foi embora. Figura dura no olhar, austera, persecutória, mas ao se descortinar essa personagem, percebemos uma mulher mergulhada em coerência, acolhimento e sororidade. Permitam-me o trocadilho clichê: Alma é a alma deste filme. Mais um clichê: o trabalho dessas três atrizes é fenomenal.

A palheta de cores como dito, mesmo na mansão, não muda tanto. Ela mostra que o casarão é um lugar frio e escuro, com móveis demais, terreno demais, corredores e cômodos que não acabam mais. Tem mofo no ar, há mofo na vida de Ida, mesmo com toda a riqueza. Há segredos dolorosos, mas há também uma certa curiosidade com o passar do tempo em Cecilia, que segue acuada, raivosa, e que também guarda seus próprios segredos. Alma desfila dignidade pela mansão, o mofo não a atinge.

É perceptível também que mesmo nas cenas externas o clima está sempre pesado. Não vemos a luz solar, tudo parece nublado e mesmo quando Cecilia está no navio indo para seu lar temporário, vemos o oceano, mas não o céu. Não temos horizontes aqui.

Cecilia não está com fome, mas Alma a lembra que a criança que ela traz sim e a força a comer. Não há outra alternativa pra nossa protagonista diante disto, que não seja agredir Alma. Esta, pacientemente dará tempo ao tempo para as coisas, quem sabe, tomarem outro rumo. Ida pede para ler um livro para a criança que ainda vai nascer; Cecilia permite. A cena nos remete a uma reflexão: alguém algum dia leu um livro, contou uma estória para Cecilia antes de dormir? Afinal, para quem Ida estava lendo?

Mesmo sem qualquer sentimento de pertencimento ao lugar, Cecilia já percorre a mansão, toca em objetos que ela nunca teve e provavelmente não terá: cama de molas (acredito que era o que tinha de melhor e mais fino nos anos 50), escova de cabelo, sabonete...

Talvez seja esperado que em algum momento do filme, a vida de nossas personagens comece a se abrir, se entrelaçar e, gestos afetuosos nos seduzam a ver saídas para tanta dor acumulada. Realmente isso acontece, mas o como acontece faz toda a diferença. A vida das personagens começa a mudar a partir de uma cena que aparentemente nos leva a uma situação de suspense e horror, mas se desenvolve de forma surpreendente, agradável, quente e bonita, enfim, o respiro.

A fotografia agora segue essa mudança de clima, com luz entrando pelas janelas da casa, os tons pastéis menos carregados, mais quentes, entretanto, a melancolia nunca é deixada de lado.

Essa melancolia é muito bem representada pelos comentários nostálgicos de Ida sobre como no passado Aurora recebia os amigos, proporcionava festas e jantares. O diretor sagazmente filma essa nostalgia com sua câmera entrando numa sala de jantar vazia, pratos, copos e talheres abandonados na mesa, restos de comida, cadeira derrubada e teias de aranha nos castiçais.

A trilha sonora está presente nos momentos chave, pesada e tensa, mas também delicada nos momentos de alegria. Não nos manipula no caminho das lágrimas nunca, mas pode ser que incomode alguns, chamando mais atenção para si do que as cenas que abarca, mas não senti desta forma, me agradando bastante.

O roteiro também obra do diretor, traz algumas transições de cenas harmoniosas e elegantes, como um rosto que aos poucos é sobreposto por uma janela de navio e logo em seguida o fluxo das águas do mar. Ou a mudança de direção no drama, onde a superfície de uma lago que recebe gotas de chuva vai aos poucos dando foco ao reflexo de árvores fantasmagóricas que rodeiam a mansão.


Madame Ida
Melancolia toma conta
Madame Ida
Momento de respiro e alívio

A proposta do acordo entre Ida e a direção do orfanato é que Cecilia fique em Aurora até o nascimento da filha desta, são noves meses com arcos temporais convincentes, uma fluidez sutil e delicada. O acolhimento, sororidade e afetuosidade entre Cecilia, Ida e Alma são tão genuínos que, se antes nos importávamos com Cecilia, agora nos importamos também com as outras duas e torcemos para que essa novíssima configuração familiar dê certo.


Madame Ida
Alegria

A personagem de Alma me fisgou completamente na cena em que Cecilia no meio da noite procura por algo para comer na cozinha e é flagrada por Alma. Num dos melhores, senão o melhor diálogo do filme, Alma desvenda o mais dolorido segredo de Cecilia, baixa a guarda da adolescente, acolhe, fala de culpas que não devemos sentir nunca e se identifica com ela de certa maneira. Um gesto de sororidade de dar inveja a muitos diálogos do século XXI.


Madame Ida
Alma

Mas então Olivia nasce, e o filme dá uma guinada de 360°, voltando para situações de violência e opressão, mas agora em outro cenário que não o orfanato.

Um pouco ou tanto da vida de Ida se descortina no jantar com velhos amigos que ela resolve fazer (um oi para você, Thomas Vinterberg!) para apresentar a filha recém-nascida, jantar esse que tem uma capacidade infinita de nos constranger (é um elogio). A priori nosso impulso é julgar e condenar todas as atitudes de Ida, sua posição social, sua aristocracia e seus comentários aparentemente elogiosos, mas apenas classistas (“quem te não te conhece nem imagina que veio de um orfanato”; “ela pertence a esse lugar tanto quanto os móveis”).

Acredito ser exatamente isso que o filme quer nos mostrar, esse estudo de personagens femininas da década de 50 e as estruturas da sociedade que não dão alívio para as mulheres, jogando umas contra as outras, causando tanto sofrimento que não importa se você é uma menina órfã pobre ou uma aristocrata de meia idade que precisa ser mãe, ou ainda uma empregada que tem casa e comida, nada além, todas são mulheres e já pagam um preço elevado por isso. Não importa como nos comportemos: já fomos julgadas e condenadas.

O filme retrata um drama de forma austera e pesada, o que para uns pode ser um defeito, já que não há margem para uma vida melhor para essas mulheres. Os diálogos são duros e contundentes. Os momentos de alegria mesmo que poucos aquecem nosso coração e, nos damos o direito de imaginar outras vidas para elas. Em todo caso, já que vejo um final que desagradaria muitos, definitivamente não é um filme fácil, nem tão pouco manipulativo à procura de lágrimas. Aqui, até chorar é difícil.


Curiosidades: O trio de atrizes principais ganhou prêmio de melhor performance em conjunto no 42° Festival de Torino – 2024

Filme produzido pela produtora Zentropa do cineasta de Lars Von Trier

A atriz Flora Ofelia Hofmann só tem 19 anos, também é cantora e já ganhou um concurso de música em 2015


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