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CRÍTICA | O Jovem Xamã (Sèr sèr Salhi) 2023

Atualizado: 17 de mar.

“ Tudo bem, vou deixar passar desta vez. Só porque acredito que vocês dois serão futuros CEO’s…”

“ Já sentiu como seu corpo estivesse dividido em duas metades? Uma metade aqui outra acolá. Embora eu esteja feliz aqui, minha outra metade está lá”


Cartaz francês do filme
       Cartaz francês do filme


Acredito que pelas nossas bandas, pouca gente sabe sobre a Mongólia, esse país asiático sem saída para o mar e o menos densamente povoado do mundo. Eu também não sei nada, e se escrevo essas breves linhas sobre o país, é porque fui pesquisar após assistir ao filme que foi indicado ao Oscar 2025 pela Mongólia e também por ser dirigido por uma mulher, a jovem (36 anos) cineasta e roteirista de nome impronunciável Lkhagvadulam Purev-Ochir (se preferir ou facilitar podem chamá-la de Dulmaa Purev-Ochir) que atualmente reside em Portugal.

Outra coisa que me deixou curiosa para assistir ao filme foi ler uma entrevista da diretora no site Mulher no Cinema, criando em mim aquela explosão: filme pequeno, país desconhecido, cinema feito por mulheres.

A premissa do filme é bem simples e talvez muito parecida com os filmes de coming of age (passagem para a vida adulta, simplificando e muito o termo) que tanto assistimos no cinema quanto na sessão da tarde. Mas, o que difere aqui é que nosso protagonista Zé (se pronuncia Zê) vivido pelo ator estreante Tergel Bold-Erdene é um adolescente de 17 anos que precisa equilibrar a vida de estudante, descoberta da sexualidade e do amor, com a vida de xamã, comunicando-se com o mundo espiritual.

Ao que parece, a religião predominante na Mongólia é o Budismo, e o xamanismo que foi amplamente praticado no país ao longo da sua história, deixou uma marca forte na cultura religiosa, mas é praticado atualmente por uma minoria da população, provavelmente mas, não com certeza absoluta, impregnando um caráter de resistência a quem o ainda pratica.

A diretora, conta a estória de Zê e um pouco do seu entorno, sem catarses ou arroubos emocionais. O roteiro (Noëllie Maugard) apresenta diálogos discretos, cenas breves, mas suficientes para contemplarmos a rotina, digamos, dupla de nosso protagonista, e temos a fotografia privilegiando paisagens em belos planos abertos, sejam paisagens urbanas quanto rurais. O filme se passa predominantemente na região das yurts, tendas circulares (também chamadas de Ger) usadas tradicionalmente pelos pastores nômades mongóis (dentre outros povos da Ásia Central) e que no filme, são o local onde se passam os rituais xamânicos praticados por Zê.

Uma fala da personagem de Maralaa (Nomin-Erdene Ariunbyamba) sugere que nossos personagens vivem no entorno da capital Ulan Bator, entretanto, a diretora subverte um pouco a lógica geográfica, fazendo com que a capital com seus prédios modernos e chaminés das indústrias seja vista como a periferia e, a região das yurts, o centro importante para a narrativa.


Yurt (Ger) onde Zé pratica os rituais de Xamanismo
Yurt (Ger) onde Zé pratica os rituais de Xamanismo
Ulan Bator como periferia de um país desconhecido no nosso imaginário e tão parecido como qualquer capital no mundo
Ulan Bator como periferia de um país desconhecido no nosso imaginário e tão parecido como qualquer capital no mundo

O filme inicia-se com uma cerimônia xamânica onde um senhor diante de Zé, na sua “face” xamã, fala da preocupação dele com seu filho. Esse personagem, sempre chamado de vizinho-avô, vivido por Myagmarnaran Gombo, também está preocupado com sua própria morte, mas o xamã afasta essa ideia.

Dentro da yurt percebemos o uso das cores em duas frentes: cores quentes com predominância do vermelho nas paredes e objetos. Já as roupas dos personagens tem um tom mais azul e cinza. A cerimônia tanto acontece nas tendas como na casa das pessoas como veremos mais adiante. Os rituais têm sempre a presença da mãe de Zé (Bulgan Chuluunbat) que parece ser quem faz a ponte entre os demandantes do ritual e o filho, e a irmã, Oyu (Anu-Ujin Tsermaa) que ajuda no ritual em si.

As cenas que envolvem os rituais são bonitas em sua singeleza, não são longas, mostrando o essencial e para que entendamos como funcionam os rituais. São apresentados também componentes bem curiosos como a vestimenta do xamã, máscara e peruca. O uso do tambor xamânico (pra mim uma grande tampinha de garrafa) é essencial para a cerimônia, pois o ritmo das batidas causam um transe em quem toca e quem ouve, o portal para o diálogo com o espiritual.

O xamã Zé com sua irmã Oyu
O xamã Zé com sua irmã Oyu

Acompanhamos então a rotina de Zé, na escola secundária, nos estudos em casa (ele parece ser um ótimo aluno), a relação com a irmã Oyu, com a mãe e com as poucas mais significativas interações com o pai (Ganzorig Tsetsgee). Tanto o pai quanto a mãe não tem seus nomes designados, assim como alguns personagens são apenas descritos como vizinnho-avô, vizinho-filho, vizinho-irmão, termos que achei muito bonitos inclusive.

Um dia, através de sua mãe ele irá à casa de uma antiga colega de escola dela, fazer um ritual com a filha, Maralaa, que possui um problema cardíaco e vai fará uma cirurgia bem delicada. A partir daí, podemos dizer que a vida de Zé se transforma em duas vidas paralelas, o xamanismo e a paixão por Maralaa.

Podemos dizer então, que é aqui que este pequeno filme se diferencia do coming of age tradicional, pois não se trata exatamente só do amadurecimento de Zé e sua angústia (que existe sim) sobre escolhas óbvias: a paixão com tudo o que ela traz e a vida espiritual. Vemos uma Mongólia progressista, onde as várias vertentes religiosas são respeitadas, onde não há maiores problemas no fato de nosso personagem amar “de forma carnal” e manter uma vida de rituais xamânicos.

Se há angustia aqui, dividindo Zé em ao menos dois (mas não somos todos nós, divididos em vários ao longo da vida?), é muito menos pela imposição familiar e social de uma religião do que um acreditar autêntico e profundo nos espíritos pelo protagonista. Não há um conflito dramático entre vida comum e espiritual, e na minha opinião isso traz toda uma poesia a estória de Zé.

Os cortes, a movimentação de câmera, combinam com a mansidão da vida dos personagens, sendo suaves e discretos.

Seguimos então os encontros de Zé e Maralaa, que mais parecem uma grande amizade que um namoro propriamente dito. Ele um rapaz quieto, tranquilo, afetuoso, cuja performance muito boa, entrega em seu rosto e olhar, tristeza, mas também um amadurecimento um tanto precoce pra sua idade. Ela, superprotegida pela mãe em decorrência da natureza de sua doença (pai ausente na tela mas presente de alguma foma na vida da filha), tem sede de vida, quer respirar, correr, dançar, transar. Num diálogo delicioso entre os dois, Maralaa, figura mais expansiva, quer morar no campo, mas refuta a ideia de criar animais, como sugere Zé, como se fosse o óbvio. Ele, apesar de espiritual, quer morar na capital num apartamento inteligente e tecnológico, ou seja, temos as contradições desses personagens mostradas de forma sutil e engraçada.

A diretora de forma fluida e pertinente, vai nos mostrando não só as contradições de Zé e Maralaa mas, da sociedade de forma geral. Zé e a irmã Oyu dormem no mesmo quarto e toda a noite, ele, antes de dormir toca harpa de boca (ou berimbau de boca) enquanto a irmã fica no celular. Na escola vemos alguns alunos com cortes modernos de cabelo entre outros adereços, entretanto a professora se porta com violência dando tapas e beliscões nos alunos, além de expor alguns para toda a sala, contando sobre os problemas de suas vidas familiares e privadas.


Escola de Zé
Escola de Zé

Como dito anteriormente, a fotografia ao mostrar as paisagens urbanas ou rurais, trazem um contraste interessante para a narrativa: vemos a comunidade em que Zé mora com imagens aéreas, a predominância de casas com seus telhados coloridos, cercas de madeira e portões de ferro adaptados, ruas sem calçamento e sem esgotamento sanitário. Porém, mesmo que saibamos que esses personagens são pobres apesar de aparentemente nada lhes faltar, são todos imbuídos de dignidade e vivenciando seu lado espiritual de forma convicta, com respeito uns aos outros.

A narrativa também traz de forma sutil o impacto do capitalismo ao país, considerando que já foi uma nação comunista (restando o budismo como marca disso), em cenas onde nosso casal dialoga e caminha dentro da meca do capitalismo, um shopping center da cidade, demonstrando ambos que gostariam de usufruir mais das mercadorias que não podem comprar, só em pensamento.

Há uma cena em particular que gosto muito, talvez aquela que exponha de maneira mais radical o conflito interno de Zé: ele sentado numa boite onde foi com Maralaa, com jogos de luzes vermelhas e azuis em seu rosto, cuja câmera vai se aproximando cada vez mais, indo de uma plano médio até um primeiro plano. O conjunto luzes e música eletrônica dão o ritmo de sua angústia. E por falar em música, a trilha sonora do filme é bastante discreta ou ausente, privilegiando os sons diegéticos (o tocar do tambor, da harpa de boca, os sons da rua).

O roteiro ainda nos traz os personagens contemplando a vida pelas janelas, e em especial a chegada do inverno, enchendo o filme de uma melancolia palpável. Lindíssima a cena onde Zé chegando em casa, vemos pontos luminosos no portão de entrada. Não sabemos se seria efeito da neve caindo e as luzes usadas (a cena é noturna) ou uma liberdade artística da diretora, nos remetendo a uma fábula, mas, seja o que for, gostei bastante do resultado.

As subtramas da irmã Oyu, da vida familiar de Maralaa e a do vizinho-avô são muito bem-vindas, resolvidas em si mesmas, sem deixar pontas, trazendo organicidade e naturalidade à trama principal. Além disso, faz com que nos importamos com esses personagens secundários.

Eu não poderia deixar de mencionar os pais de Zé e Oyu, que aparecem pouco na tela (principalmente o pai), mas, são personagens encantadores e com posturas éticas que ficam evidentes no tratamento que dão ao drama particular da filha e a possibilidade de trabalho temporário de Zé.

Enfim, mais um filme de feliz descoberta que abre um outro olhar para aquilo que talvez nem daríamos bola se não fosse o cinema e suas narrativas diversas. Ao fim, não temos a sensação de que Zé simplesmente amadureceu e fez escolhas difíceis. Apenas observamos que, como qualquer um de nós, a vida vai nos levando sempre para algum lugar que pode ser bom ou não, e nem sempre é fruto das nossas escolhas mas, muitas vezes fruto do respeito às escolhas do outro, e de como podemos seguir a partir daí com dignidade.


Zé e seu colega de colégio pelas ruas da capital
Zé e seu colega de colégio pelas ruas da capital
Zé e o vizinho-irmão
Zé e o vizinho-irmão

Curiosidades: City of Wind (Cidade do Vento) foi o título em inglês da obra. O Jovem Xamã é o título em Portugal, não temos título ainda para o filme aqui no Brasil.

O filme é uma cooperação entre 6 países: Mongólia, Catar, Alemanha, Holanda, Portugal e França.

O ator Tergel Bold-Erdene (Zé) ganhou prêmio de melhor ator na Mostra Internazionale D’Arte Cinematográfica La Biennale di Venezia 2023, Orizzonti Award.

A diretora Lkhagvadulam Purev-Ochir possui dois curtas no currículo: Mountain Cat (2020) exibido em Cannes e Snow in September (2022) premiado em Veneza e Toronto.

As tendas (yurt ou ger) foram tombadas em 2013 pela UNESCO como Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade.

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